sexta-feira, 8 de outubro de 2010

TRAMAS


Direitos autorais garantidos

- Tramas... tramas... A quantas tramas o destino nos submete...
- É verdade. Mas não é o destino. Nós mesmos traçamos nossas tramas, os nossos envolvimentos. A verdade é que somos nós mesmos que os fabricamos, e é ele, o destino, quem se submete a nós, senhores que somos do nosso futuro.
- Senhores do nosso futuro ? Mas que conversa é essa, meu caro ?
- É o que digo. Urdimos nossas próprias tramas, primeiro no presente. Depois... bem, aí cada um pensa como quiser...
- Você está muito reticente. O que está querendo dizer ?
- O que quero dizer, já disse.  Nós nos entrelaçamos em histórias escabrosas e depois nos assustamos com as consequências. Quer ouvir uma delas?
- Claro ! Suas histórias são sempre muito boas.
- É, mas esta é verídica. E você nem era nascido, ainda.
- Uma história antiga...
- Nem tanto. Eu já era homem feito. Foi em Londres. 1920. Eu morava lá, naquela época.
- Londres? No mínimo, vamos ouvir falar do “fog”, da Scotland Yard...
- Da Scotland Yard, sim. O “fog” fica por conta da sua imaginação. Mas infelizmente é uma história triste, muito triste.
- Por que ?
- Você vai saber. Primeiro, há particularidades nessa história, que são importantes. Por exemplo: não sei se você sabe, há ruas e mais ruas em Londres com intermináveis filas de casas, todas identicamente iguais. Um meio porão, uma pequena escada de sete ou oito degraus, uma porta ampla, duas ou três janelas. Casas amplas, geminadas, formando uma longa fileira de escadas, portas e janelas. Os tijolos, na sua cor natural, emprestam um ar de solidez às construções, e as esquadrias  pintadas de branco conferem a elas a tradicional aristocracia inglesa, ainda que em casas da classe média, residências que são de advogados, médicos, engenheiros. E é este o cenário da nossa história. Vamos a ela.
Em uma destas casas, que se distinguia das outras apenas pela placa à direita do portão, com o número 1371, moravam Herbert e Susan. Ele, professor universitário, ela de “prendas domésticas”, como se dizia na época. Viviam em agradável rotina. Todas as tardes Herbert apontava na esquina, e invariavelmente Susan o esperava, vigiando a sua chegada por trás das vidraças do pavimento superior. Vinha ele ora lendo as manchetes do vespertino, ora trazendo pequenos embrulhos de compras, depois de um dia de longas e cansativas aulas. Tinha-se a impressão de que nada jamais quebraria a rotina do casal.
No entanto aquelas casas, monotonamente iguais - e por isso mesmo - seriam o palco de acontecimentos que viriam romper, violentamente, a placidez da hora do crepúsculo.
Naquele dia Herbert adiantara-se um pouco, talvez uns quinze minutos apenas, mas o bastante para que Susan ainda não estivesse em seu posto de espera. Ele vinha aparentemente distraído, em passos lentos, de cabeça baixa, segurando em cada braço dois grandes pacotes de compras.
Susan terminava a sua toalete, após o banho. Dirigiu-se à janela, enquanto escovava os longos cabelos. Observava a esquina próxima, à espera que o marido despontasse por detrás do muro quando ouviu, no andar térreo, a porta da frente que se abria com forte ruído. Susan correu para o corredor que dava acesso aos quartos. Do alto da escada viu o marido parado, extático, ainda no umbral, agarrado aos pacotes de compras.
- Herbert ! O que houve, meu Deus ? Que barulho foi esse ? Por que não entra, homem ?
Herbert tentou falar, mas não conseguiu. Olhou a esposa fixamente, com uma expressão de pavor. Susan desceu as escadas de um salto :
- Por favor, Herbert, diga-me o que aconteceu! Dê-me estes pacotes... Fale comigo...
Herbert sentou-se, antes que lhe faltassem as pernas. Parecia estar saindo lentamente de um estado de choque.
- A Meg... está morta, Susan ! Está lá, caída no vestíbulo, de bruços sobre o tapete, com um... punhal cravado nas costas ! Ela está morta ! Morta !
- Quem está morta, Herbert ? A Margareth ? E como você sabe ? Que foi fazer na casa deles a esta hora?
- Agora há pouco... eu vinha pela rua... você sabe... nossas casas são todas iguais... Distraído como sou, dirigi-me à casa dos O’Neil, confundindo-a com a nossa. Com as mãos ocupadas, empurrei a porta com o ombro, já estranhando tê-la encontrado entreaberta. Então a vi, caída no chão, com aquele horrível punhal cravado nas costas ! Imóvel, os olhos vidrados...
- Meu Deus, Herbert !
- Eu ainda pude ver um vulto, que escapava pela porta dos fundos ! Não sei quem seria, e tampouco procurei saber. Saí, como entrei...
- A Margareth, Herbert, assassinada em sua própria casa ! E mais essa, você enganando-se com as portas... Como pôde acontecer isso ? E agora, o que vamos fazer?
- Só há uma coisa a fazer. Chamar a polícia !
- A polícia ? E quem acreditaria na sua história? Quem imaginaria ser possível alguém enganar-se com a própria casa onde mora ?
- Mas eu confundi as portas, Susan. E não há nada a temer, se é a pura verdade. O que não posso é ficar por aqui aguardando calmamente que alguém descubra o corpo, sabendo que a pobre Meg está lá, caída...
- Meg... Diga-me, desde quando, tanta intimidade? 
- Ora, Susan ! Aponte-me uma única Margareth, em toda a Inglaterra, que não seja Meg. Maneira de falar, apenas... E o momento é grave, não comporta esse tipo de observação !
- Então vai chamar a Scotland Yard ?
- Mas é claro. E já, nada tenho a temer.
- Pois bem. Mas ao menos relaxe um pouco, pois por ela nada mais há a fazer.
- Sim. Pobre Margareth... Quando Francis souber, há de enlouquecer !
Susan percebeu que a vizinha estava novamente sendo tratada por Margareth. Herbert voltava ao tratamento cerimonioso.
Algum tempo depois, um carro da polícia parou, sem alarde, em frente à casa. Em seguida, bateram à porta. Herbert apressou-se em abri-la.
- Boa tarde, senhor. Sou o inspetor Jackson, da Scotland Yard. Alguém nos chamou comunicando um crime, mas não vejo...
Herbert atalhou-o :
- Eu chamei a polícia, inspetor Jackson. Mas dei o endereço da casa ao lado, não o meu.
O inspetor Jackson retirou um pequeno bloco de notas do bolso do sobretudo.
- Recebemos um chamado para o número 1373. Não é aqui ?
Herbert olhou de soslaio para Susan, com um ligeiro sorriso nos lábios.
- Não, senhor. É ao lado...
O inspetor voltou ao patamar, para conferir o número da placa.
- Ora... essas casas tão iguais, às vezes nos confundem, na verdade. Bem, mas vamos aos fatos. Foi o senhor quem ligou ?
- Sim, fui eu.
- Gostaria que me acompanhasse à casa de seus vizinhos.
- Sim, sim, é meu dever. - e voltando-se para Susan - Não convém que você vá, querida. A cena é chocante.
Encaminharam-se para a casa ao lado. A porta estava apenas encostada, como ele a havia deixado. O inspetor   empurrou-a  e  deparou  com   o  corpo  de Margareth no local e na posição descrita por Herbert.
Caído de bruços, tomando a diagonal do pequeno vestíbulo. Vestia um “negligée” bastante transparente. Os cabelos dourados, em pequenos caracóis, caiam em desalinho pelos ombros, e o rosto pousado de lado no chão deixava à mostra seus olhos verdes, arregalados, que pareciam haver fixado as feições do assassino.
- Pobre moça. O senhor comunicou-se com o marido, Mr. Herbert ?
- Não, inspetor. Não julguei que minha ação fosse além do contato que fiz com a Scotland Yard. Aliás...
- Sim, Mr. Herbert ?
- Bem, creio mesmo que ele já devesse estar por aqui, pois é um homem de hábitos bastante rotineiros e a esta hora, geralmente, já está em casa.
- Conhece os seus hábitos, Mr. Herbert ?
- Não propriamente. Mas, como vizinhos que somos, às vezes, mesmo que não se tenha a intenção de bisbilhotar, acaba-se ficando a par da vida dos outros.
Enquanto fazia perguntas, o inspetor examinava o ambiente.
- Com que então o senhor enganou-se de casa...
- Sim, eu vinha muito distraído. Externamente não há nenhuma diferença entre essas construções. O senhor cometeu o mesmo engano, não ? Por que estranha que tenha acontecido comigo ?
Herbert estava excitado.
- Calma, Mr. Herbert. Eu não disse que havia estranhado, fiz apenas um comentário...
- Desculpe-me. Estou muito nervoso. Jamais pode-ria imaginar que iria encontrar a Meg nestas circunstâncias.
-Meg ? Hmm... E em quais circunstâncias esperava encontrá-la ?
- Inspetor !  Eu não esperava encontrar a sra. Margareth em nenhuma circunstância ! Eu estava retornando à minha casa e não à dela, lembre-se !
- Sim, claro, claro. Devo concluir, pelo tratamento dispensado à vítima, que as famílias eram íntimas ?
-  Não, senhor. A nossa intimidade não ia além de um ou dois cumprimentos diários.
- E quanto a esse vulto que o senhor disse-me ter visto? Poderia dizer-nos mais alguma coisa sobre ele?
- Não muito. Na verdade quando entrei na casa já era quase noite, e só havia uma luz acesa, a deste saguão. O resto da casa estava na penumbra. Vi apenas uma sombra esgueirando-se por aquela porta.
Herbert apontou para uma porta que dava para o quintal.
- Homem ou mulher ?
- Homem, por certo. A menos que as damas já estejam usando calças masculinas...
Encaminharam-se os dois para a porta dos fun-dos, enquanto os auxiliares do inspetor Jackson tomavam as providências cabíveis junto ao corpo.
- Há marcas aqui na terra. Veja, Mr. Herbert, são marcas de sapatos, e de sapatos grandes.
- Talvez do próprio Francis...
- Quem é Francis ?
- O marido de Margareth.
- O senhor o está acusando, Mr. Herbert ?
- De modo algum ! Mas, se a casa é dele... Há de haver marcas dos seus pés por aí...
- Dito assim, soa como acusação...
- Inspetor, não tente por as palavras em minha boca. Fiz um comentário, apenas.
- Mas para um profissional de polícia, qualquer comentário é digno de análise.
- Convenhamos que só me falta ouvir que estou sob suspeita !
- Desculpe-me, senhor, mas não posso descartar nenhuma possibilidade. Toda essa história será analisada, palavra por palavra. Se é só o que temos...
- Mas eu só estou nessa história porque enganei-me de casa, por Deus ! E por isso passo a suspeito de um crime ?
- Compreenda-me, senhor, eu não o estou acusando de nada. Mas é meu dever esmiuçar todos os pormenores.
- Sim, sim, eu compreendo. Mas tantas dúvidas, tantas insinuações...
- Infelizmente, terei que convocar todos os envolvidos, direta ou indiretamente, para prestarem depoimentos.
- Então, estou sob suspeita. Muito bem, estou às suas ordens.
As investigações se sucederam. No mesmo dia foram ouvidos, além de Mr. Francis, que chegou logo em seguida e foi tomado por forte crise nervosa, Susan, Herbert, e a criada de Francis e Margareth.
Até um vendedor de frutas, que frequentemente fazia o seu comércio perto das duas casas, por ter visto Herbert entrar e sair da casa da vizinha, prestou também o seu depoimento. Além de outras pessoas, ainda que pouco ou quase nada envolvidas no caso, mas que mais tarde talvez viessem a ser valiosas testemunhas no processo.
Para o inspetor Jackson todos eram suspeitos, uma vez que não havia muitas pistas a seguir. Mas ninguém era tendenciosamente considerado criminoso e por isso necessitado de previamente provar a sua inocência. Havia antes de tudo o respeito à integridade moral de qualquer um dos envolvidos em tão triste acontecimento. Era esse o estilo de trabalho da famosa polícia.
Entretanto, com o decorrer dos trabalhos, começaram a recair suspeitas mais fortes sobre Herbert. Por qualquer motivo que o inspetor Jackson não conseguia atinar qual fosse, imaginou que Herbert preparara uma trama bem urdida para dar cabo de Margareth. A troca de casas alegada por ele não o convencera, embora ele próprio houvesse cometido engano semelhante. Mas ele não morava ali e enganara-se, talvez, por ter lá ido apenas uma vez, o que não era o caso do marido de Susan.
A porta do vizinho poderia não estar aberta quando Herbert lá chegou; “Meg”, como carinhosamente ele referira-se à vizinha, talvez a tivesse aberto para ele, de “negligée” e à meia-luz, dando-lhe intimamente as costas. Por isso, poderia tê-la apunhalado por trás, tendo-a colocado suavemente no tapete, com cuidado para não manchá-lo de sangue. A posição do corpo não era de quem houvesse caído de uma só vez, o que reforçava as suas suspeitas. Pensara talvez em esconder o corpo mais tarde, mudando posteriormente de decisão.
Apenas o motivo do crime ainda não percebia qual pudesse ter sido. Mas as provas começavam a lhe parecer muito evidentes. Mr. Jackson, por isso, resolveu indiciar Herbert como provável autor do crime e tentar levá-lo a julgamento.
Susan parecia chocada. Herbert, um criminoso? Não... Ele não teria tanto sangue frio a ponto de tirar a vida de quem quer que fosse, armando para isso tamanha trama e tentando incriminar o pobre Francis. Não, não o Herbert.
Assim pensava também Mr. Jerome Kent, um brilhante advogado, amigo de Herbert e Susan de longa data. Jerome mostrava-se indignado com o inspetor pela indiciação de Herbert. Resolveu lutar para impedir que tal indiciação fosse levada avante, assumindo a sua defesa. Estudou minuciosamente o caso, inteirou-se de todos os pormenores. Pediu, então, formalmente, uma audiência com o inspetor, para tentar demovê-lo da idéia da acusação de Herbert. Ele já tinha o seu próprio conceito formado. Francis e não Herbert, era o criminoso. Matara a esposa por ciúmes incontroláveis. Margareth era uma linda mulher. Embora muito recatada atraía as atenções de todos onde estivesse, e Francis devia sofrer muito por isso. Algumas vezes, tanto Herbert como Susan já haviam ouvido não muito discretas discussões do casal, por causa dos ciúmes exagerados de Francis. Além disso, no entender de Jerome, as provas que a Scotland Yard tinha em mãos até então eram inteiramente contra ele. As marcas encontradas na terra coincidiam com as dos seus sapatos, que o próprio Jackson observou estarem sujos, na hora em que ele tomou conhecimento da tragédia e ajoelhou-se ao lado do corpo, chorando muito. A punhalada nas costas, sem nenhum sinal de luta, e a posição do corpo sobre o tapete, de bruços e com os braços encolhidos sob o corpo, indicava que a pobre Margareth havia sido atingida pelas costas e de surpresa, tendo seu corpo sido pousado no chão pelo assassino. E o próprio punhal pertencia a Francis. A ausência de digitais indicava que o assassino havia tomado as providências para encobri-las.
Mas ainda havia mais. Jerome disse ter uma testemunha decisiva: o vendedor de frutas, que fazia ponto do outro lado da rua, em frente à casa de Francis, e que se lembrava muito bem de ter visto um homem entrar e sair da casa sobraçando dois enormes  embrulhos, um  em cada braço, não tendo se demorado mais do que alguns segundos, o que, a seu ver, não lhe teria proporcionado tempo hábil para cometer o crime.
Pressionado pelas evidências, ou pelo menos pelo que se mostravam ser evidências, o inspetor resolveu reconsiderar a sua decisão. Talvez o advogado tivesse razão. Talvez houvesse mais provas contra o marido da morta do que contra Herbert. Reestudou o caso, tomou novos depoimentos. Desta vez, o ambulante enfatizou - honestamente - o reduzido tempo em que Herbert permaneceu dentro da casa e como não teria tido tempo suficiente para desvencilhar-se dos embrulhos, cometer o crime e depois apanhá-los. E o inspetor convenceu-se, por fim. Chamou à sua presença Susan e Herbert, que compareceram acompanhados de Jerome. Comunicou-lhes que iria retirar as acusações contra Herbert, pois havia um outro mais forte suspeito: Francis.
- É claro que o júri é soberano para decidir se ele é realmente o culpado. Eu apenas indicio os suspeitos baseado em minhas investigações. Os novos depoimentos fizeram com que as investigações tomassem novo rumo. Mr. Herbert, o senhor está livre de quaisquer suspeitas.
Jerome olhou para Susan e sorriu. Haviam ven-cido.

E Francis foi julgado. Protestou inocência durante todo o desenrolar do processo de acusação e do julgamento. Recusou-se a falar, parecia ter medo de mover-se em sua própria defesa. Demonstrava com as suas atitudes ter alguma culpa, ou pelo menos agia como tal. Não se atinava qual o motivo que o teria levado a cometer tal crime, e tampouco ele o confessava. Mas as provas eram evidentes e condenatórias. Além de tudo, ninguém jamais saberia ao certo como teria sido a vida do casal, na intimidade. Por detrás da sobriedade e da elegância que sempre demonstravam, no relacionamento social, que teria havido de tão grave ou escabroso que viesse a culminar em tão chocante crime ?
O acúmulo de provas e o brilhantismo da promotoria acabaram por sensibilizar o júri e Francis foi condenado. A sentença para tais crimes era drástica. Francis estava perdido. Houve as apelações da defesa, que de nada adiantaram senão adiar por pouco tempo a terrível sentença : morte por enforcamento.
Herbert e Susan voltaram à vida rotineira. Ele continuava distraído, mas nunca mais se enganou com as portas... Mesmo porque a casa vizinha permanecera fechada desde a época dos funestos acontecimentos. Ambas as famílias, tanto de Francis como de Margareth jamais voltaram ao bairro, delegando a um corretor a venda do imóvel.
Mas nem tudo ia bem na casa n.1371. Já se haviam passado alguns meses desde o ocorrido e Herbert permanecia inquieto, um tanto nervoso, doente, desanimado e desinteressado por tudo. Ele via Susan desvelar-se em cuidados e atenções. Ela mesma ia à cozinha preparar suas refeições, seguia as orientações médicas à risca, sem que ele respondesse com saúde a tanto zelo. Definhava a olhos vistos. Nem mesmo o médico, por fim precisando estar constantemente à sua cabeceira, descobria a causa daquelas doentias reações.
Por fim já não se levantava do leito. Seu estado de fraqueza era tal que não mais lhe permitia sequer levantar os braços. Dobravam os cuidados e as atenções de Susan, mas em vão. Herbert tinha certeza de que estava se aproximando do fim.
- Susan... chegue mais perto... -  sua voz era um fio - preciso que você me ouça com atenção. Você também, Jerome, meu amigo.
Jerome também velava à sua cabeceira. O desenlace não tardaria. Ambos aproximaram-se mais, para ouvi-lo melhor.
- Eu estou acabado, Susan. Ninguém sabe por quê eu definho mais e mais a cada dia que passa... mas eu sei. É o remorso que me corroi as entranhas... Mas não quero morrer com este peso na consciência, com essa culpa ardendo-me por dentro. Eu tenho uma confissão a fazer.
Susan olhou para Jerome. Sua fisionomia não denotava tristeza. Surpresa, sim. E um ligeiro desapontamento...
- Susan... Eu matei Margareth...
Ela olhou-o, sem espanto. Com desinteresse, mesmo.
- Você, Herbert ? Mas por quê ? Que motivos teve?
- Nós tínhamos um caso, Susan... Um caso banal... Mas ela apaixonou-se por mim, queria que eu me divorciasse... Eu sempre gostei de você, meu amor. Tinha-mos apenas uma aventura, eu não queria destruir o meu lar. Ela ameaçou-me com o escândalo e a chantagem, estava desnorteada. Resolvi então por termo a tudo. Armei toda a trama, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Por fim, matei-a... Eu matei Margareth por amor a você, Susan. E matei Francis também, pobre coitado. Agora, mata-me o remorso... Perdoa-me, Susan...
Susan a tudo ouviu friamente. Seu olhar era calmo, enervante. Diabólico, mesmo...
Ao seu lado, Jerome estava impassível. O esforço da confissão parecia ter sugado o resto das forças do pobre Herbert. Ele não conseguiu captar o estranho olhar da esposa.
- Eu matei Margareth... e Francis... - repetia ma-quinalmente - perdão, perdão...
- Herbert - Susan respirou fundo, com enfado - também eu tenho uma confissão a fazer. Não é apenas o remorso que lhe corrói as entranhas. Sou eu, Herbert... Sou eu quem está lhe matando aos poucos... lentamente... suavemente...
Herbert reuniu as últimas forças:
- Você? Mas... por que, Susan?...Você...sabia?...
- Não, eu não sabia. Mas também eu armei uma trama, meu caro. Você matou Margareth porque ela começava a lhe aborrecer, não foi ? Pois você ajudou-me a matar Francis, porque ele também começava a me perturbar. Também nós tínhamos um caso... E ele exigia de mim o que Margareth exigia de você... Fez as mesmas ameaças, o escândalo, a chantagem... Até que você facilitou as coisas para mim. Quando foram retiradas as acusações que recaíam sobre você e voltamos à nossa vida aparentemente normal, livres da todos aqueles pesadelos, continuei com a minha trama. Agora você poderá imaginar por que eu preparava a sua comida com tanto desvelo, com tanto carinho, não é mesmo? Eu não podia fazer as coisas apressadamente, precisava ter paciência... E o veneno, administrado em doses mínimas, foi o meu aliado. Ou será que foi o seu remorso, que me ajudou, Herbert? Tanto faz, agora...
Aquela confissão era demais para Herbert. Jamais poderia imaginar que a sua Susan... e Francis...
Desviou o olhar para Jerome, como que buscando silenciosamente um apoio, um impossível desmentido do que acabara de ouvir, que viesse do amigo.
Mas Jerome fitava-o com um sorriso nos lábios... Herbert já não mais entendia o que se passava. Por que Susan estava matando-o? Francis já não estava morto? E aquele sorriso do amigo, afrontando-o em seus últimos momentos ?
- Jerome, você...- Herbert não conseguiu terminar a frase. De olhos fixos no seu defensor, no seu... amigo, já não tinha mais sua mente em ordem. Então, em meio a uma convulsão, fechou os olhos para sempre.
Susan, então, voltando-se para Jerome tomou sua mão, e apertando-a contra o peito, murmurou carinhosamente:
- Enfim, Jerome... Estamos livres...
- Como vê, meu caro, são tramas em cima de tramas. E eu presenciei todo o desenrolar desse trágico novelo... Até mesmo a posterior condenação do casal. Mas isso já é outra história...
- Meu Deus, que coisa incrível ! Mas como você guardou tantos detalhes, depois de todo esse tempo ?
- É verdade...Talvez por ter estado muito perto de tudo...
- Como assim ?
- Como eu lhe disse, morava em Londres, na época. E tinha uma banca de frutas, quase em frente à casa de Herbert...    

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